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Aprendizagens em tempos inimagináveis


Uma reflexão em jeito de balanço

Após mais de dois meses de confinamento, finalmente resolvi escrever, quebrando o natural silêncio que me acompanhou neste período de reflexão forçada. O facto de termos vivido (e ainda estarmos a viver) tempos inimagináveis, com impactos cuja magnitude global não têm precedente, levaram a que fôssemos forçados a fazer uma pausa, que cada um de nós aproveitou da forma que melhor pôde e soube.

Dei por mim a observar com atenção e muitas vezes espanto, o conjunto de fenómenos que se desenrolaram, seja em contextos pessoais, seja em contextos sociais, seja em contextos organizacionais. E aquilo a que assisti, no meio desta enorme tragédia, não deixa de me deixar globalmente otimista.

Todos tivemos de passar por enormes aprendizagens, num esforço de adaptação sem precedentes. No geral, penso que poderei dizer com alguma segurança, que estivemos bem. Partilho assim convosco esta reflexão que tive oportunidade de fazer.

Do medo e do distanciamento à humanização reinventada

Todos nós teremos passado de alguma forma por diversas fases de reação à pandemia e ao confinamento. Eu próprio dei por mim a viver essas diferentes fases:

  1. Negação – numa primeira fase não queríamos acreditar que isto estava a acontecer, ou estando, não quisemos crer que seria tão grave ou que nos afetaria de forma tão profunda. Eu próprio dei por mim a tentar convencer-me de que tudo não passava de um exagero, e que não teria mais consequências do que tinha tido a Gripe A;
  2. O choque de realidade – com o encerramento das escolas, o confinamento e o Estado de Emergência, de repente não deu mais para negar. A situação era grave e era preciso lidar com ela de forma firme e determinada. era preciso assumir uma nova forma de estar, a que não estávamos habituados: o distanciamento social e, em muitos casos, a solidão. Estabeleceu-se nesta altura o sentido de urgência. Destaco nesta fase o trabalho extraordinário que muitos profissionais de recursos humanos fizeram, de forma a garantir que a economia poderia continuar a funcionar, se bem que em moldes que tiveram de ser reinventados a enorme velocidade. Eles também foram e são heróis da nossa sociedade, tendo evitado um desastre absoluto em termos de economia e mercado de trabalho. Também todos os profissionais de IT envolvidos na reconversão de métodos de trabalho com recurso a tecnologia merecem destaque, pela velocidade com que ajudaram a que pudéssemos, finalmente, explorar todas as potencialidades das ferramentas fantásticas que nos permitiram trabalhar à distância. Também eles foram heróis. E dos próximos heróis falo na fase seguinte;
  3. Da potencial depressão ou burnout à reinvenção do trabalho – no primeiro domingo  de confinamento dei por mim à beira de um estado depressivo. O sentimento de solidão era avassalador, a incerteza era pesadíssima, a inanição dominava-me. Para mim, que vivo e respiro o contacto humano, estar fechado dentro de quatro paredes era a pior tortura a que podia estar sujeito. Felizmente, como a grande maioria de nós, acabei por encontrar forma de reagir e de me reinventar. Desde a adoção de novas rotinas (e como as rotinas são importantes para não perdermos o norte e para nos mantermos produtivos), à possibilidade de trabalhar de forma mais produtiva e focada (aqui uma palavra a todos os pais que tiveram de gerir heroicamente a rotina dos filhos e a sua própria de forma tão exigente e coordenada), à descoberta do valor de fazer pausas, de refletir e de reapreciar gestos humanos tão simples, que só são valorizados quando somos privados daquilo que damos por adquirido. Disso falo na fase seguinte. Mas não queria deixar de destacar a verdadeira revolução que consistiu a descoberta de que podemos aprender a fazer tantas coisas de forma nova e diferente, quando somos forçados a sair da nossa zona de conforto. Nunca me imaginei a dar aulas online, a fazer reuniões com clientes à distância com tanta naturalidade e facilidade, ou a aprender por mim as mais variadas temáticas que me interessam;
  4. Do potencial alienamento ao reforçar dos laços – quando somos privados do que damos como certo, passamos a atribuir-lhe um valor maior. Passamos a dar atenção aquilo que tínhamos e que de alguma forma deixámos de ter. Eu, que andava sempre tão ocupado e sem tempo para falar ou estar com a minha família, mas sempre com o pensamento reconfortante de que, quando quisesse, o poderia fazer, dei por mim a constatar coisas surpreendentes nesta fase de confinamento… Nunca falei tanto com a minha família como nestes dois meses. O facto de não podermos estar juntos uma vez de vez em quando nas reuniões e festas familiares, levou a que passássemos a estar juntos todos os dias, seja através de WhatsApp, seja através de Zoom, seja através de HouseParty, seja através de Skype. Passámos todos a preocupar-nos mais uns com os outros, a querer saber uns dos outros e a partilhar infinitamente mais. Mas o mais interessante deste fenómeno de re-humanização é que não se limitou ao nosso círculo de familiares e amigos próximos (onde os laços são tipicamente fortes). A verdade é que isso aconteceu entre vizinhos, membros da mesma comunidade ou mesmo entre estranhos. A adversidade despertou o espírito de entreajuda, e o que antes nos separava deixou de ter importância face ao que urgia garantir: a solidariedade e o bem comum. E assisti e vivi inúmeros casos tocantes que o ilustraram. Mesmo que não tenha sido um fenómeno que tocou todos (nunca tocará todos, mas não deixou de lançar sementes, que estou certo que germinarão). E nesta onda de re-humanização, todos nós fomos heróis;

O trabalho reinventado: surpresas e perplexidades

A necessidade de se reinventar a forma de trabalhar veio curiosamente acelerar muitas das tendências de futuro das quais eu vinha a falar há mais de uma década nas muitas conferências que fiz sobre o tema. Por vezes, é necessário um evento desta magnitude para fazer acontecer o que, de outra forma, levaria gerações a mudar…

  1. O fim do presenteísmo e o primado da liberdade e responsabilidade – durante muitos anos, falei de como o presenteísmo era um fenómeno perfeitamente absurdo, que revelava resquícios de mentalidade do século XIX nos gestores do século XXI. O maior obstáculo à generalização do teletrabalho nunca foi a tecnologia (ela existe há anos!), mas sim a mentalidade de muitos gestores, que sempre sentiram necessidade de manter o controlo sobre o trabalho dos outros, vendo o que faziam e mantendo-os por perto. Ora isto em muitas atividades (especialmente do setor terciário) não faz sentido algum! O impacto ecológico de milhões de pessoas acordarem todas à mesma hora, gastarem horas numa fila de trânsito (com consequente perda de tempo e a monumental pegada carbónica implicada), para entrarem todas à mesma hora num edifício de escritórios numa grande metrópole, para estarem todos juntos a fazer coisas que, em 90%  dos casos, não requer que estejam todos juntos, era a maior insanidade do ponto de vista da organização do trabalho… e tudo isto para quê? Meramente para conforto psicológico de gestores que não acreditavam que, se dessem a liberdade e a responsabilidade às pessoas para gerirem o seu trabalho por resultados (mesmo que à distância), as coisas poderiam funcionar. Foi preciso uma pandemia desta magnitude para evidenciar o óbvio: é possível ser-se tão ou mais produtivo trabalhando remotamente. Com menos custos ambientais, com mais qualidade de vida, com menos stress e com menos custos para as próprias empresas, que subitamente percebem que não têm necessariamente de pagar rendas exorbitantes por escritórios gigantescos no centro da cidade;
  2. Da produtividade saudável à armadilha da ubiquidade – quando um evento desta magnitude nos obriga a mudar hábitos, rotinas e formas de trabalhar, descobrimos que podemos ser muito mais produtivos e de forma mais saudável. Quando eliminamos os tempos de deslocação para o local de trabalho, podemos começar a trabalhar mais cedo, podemos controlar e ajustar os nossos ritmos de trabalho e fazer pausas, permitindo ao nosso corpo e ao nosso cérebro produzirem em melhor forma. Podemos ganhar mais horas de sono e até arranjar tempo para fazer exercício (eu, que me limitei durante anos a pagar a mensalidade do ginásio sem lá meter os pés, passei a fazer exercício todos os dias, com benefícios óbvios para a minha saúde física e mental). Mas tudo isto pode ser comprometido se não tivermos disciplina e se não disciplinarmos os outros. O facto de estarmos permanentemente ligados e disponíveis pode levar à armadilha da ubiquidade, ou seja, à situação em que todos acham que podem dispor de nós quando quiserem e podem exigir que “estejamos lá”, de forma virtual, a qualquer dia ou a qualquer hora. Os pedidos de resposta imediata, sem considerar o “pipeline” de trabalho dos outros, pode ser avassalador, se não estabelecermos limites. Cheguei a assistir a várias situações de pessoas à beira do “burnout” porque passaram a ter de fazer jornadas de 14 ou mais horas de trabalho, porque todos lhes pediam tudo “para ontem”. Cheguei a assistir à insanidade de profissionais que tinham de estar em 3 “calls” em simultâneo, porque quem as marcava não verificava se havia sobreposições de reuniões virtuais e quem era convocado não era capaz de dizer “não”. Cheguei a assistir a situações verdadeiramente obscenas de gestores a convocar reuniões com a sua equipa para as 22h00, como se não houvesse vida familiar ou horários de trabalho. A tudo isto temos de aprender a dizer “basta”, de forma educada e pedagógica. E isto tanto vale para liderados como para líderes. Quantas vezes tive de dizer a colaboradores que me enviavam mensagens à uma da madrugada para irem dar atenção a quem tinham em casa, só respondendo no dia seguinte…
  3. O primado dos agentes livres – sobre isto já tinha falado anteriormente, no meu post “”A busca de propósito num mercado de agentes livres“, sendo que agora o que era uma tendência passou a ser uma realidade para muitos de nós. Este momento disruptivo permitiu a muitos profissionais (especialmente os mais qualificados) o tomar o gosto pela liberdade de gerirem a sua própria vida, de (re)lançarem os seus negócios, de serem donos do seu tempo, de se libertarem das amarras da vida corporativa tradicional. Muitos expressarão isto através da sua resistência em voltar a trabalhar num escritório, mesmo mantendo os vínculos tradicionais – sobre este tópico destaco o interessante artigo da HBR “How to Manage an Employee Who’s Struggling to Perform Remotely“. Outros, como eu, levarão a ruptura mais além. Este momento levou-me a repensar a minha vida de tal forma que abandonei o mundo corporativo tradicional, voltei a ser um empresário que gere a sua própria firma de consultoria e actua como consultor independente de várias corporações. Também serviu para me focar e dedicar à minha outra profissão: ser professor universitário, contribuindo para a criação e disseminação de conhecimento. E por fim, ter tempo para ser também jornalista, liderando uma das mais reputadas revistas de recursos humanos do país. Nunca fui tão livre, feliz e realizado…
  4. A emergência de um “growth mindset” – num mundo em que trabalharemos cada vez mais em equipa, em formatos mistos (presencial/distância), a partilha de conhecimento continua a ser crítica, mas a aprendizagem vai depender cada vez mais da nossa forma proativa de aprendermos por nós, buscando conhecimento e educação à distância de um clique. Essa tendência tende a tornar-se irreversível, pela verdadeira explosão da oferta de webinars, de formação online de todo o tipo de instituições, começando pelas mais reputadas “business schools”. Cada vez mais não haverá tempo ou espaço para o formato de transferência tradicional de conhecimento, de um professor ou colega mais sénior para um aluno, aprendiz ou colega mais júnior. A velocidade com que temos de colaborar vai exigir profissionais cada vez mais produtivos e sedentos de aprender. Esses são os que vão prevalecer nesta época pós-pandémica;
  5. Novas formas de gerir pessoas e de estabelecer laços – coisas tão “normais” como receber um novo membro na organização ou na equipa, dar feedback ou fazer uma avaliação de desempenho, tipicamente feitas apenas “face to face”, vão passar a ser feitas remotamente e encaradas como algo perfeitamente normal. A partir do momento em que podemos interagir por vídeo, a distância física perde relevância e a riqueza da comunicação não verbal é ainda assim preservada. Os momentos de contacto pessoal continuarão a existir, provavelmente dedicados a momentos de grande impacto pessoal e emocional. Mas os laços não vão deixar de se estabelecer, mesmo que com recurso a canais digitais. A sua vulgarização, aliás, poderá levar a que a frequência dos contactos e da criação de laços aumente… Sobre este tópico recomendo vivamente a leitura do interessante artigo da HBR “Onboarding a New Leader — Remotely“;
  6. O paradoxo do distanciamento social – curiosamente, o distanciamento social levou ao reforçar da pertinência das chamadas “soft skills”: trabalhar em equipa, cooperar, partilhar conhecimento, co-criar, tornaram-se não só essenciais como diferenciadoras para o sucesso de qualquer profissional, a partir do momento em que os contextos de trabalho passaram a ser mais ambíguos, variados e inconstantes, requerendo a criação de laços através de processos de comunicação multi-canal. Nunca como hoje a escuta ativa foi tão importante, nunca como hoje a resiliência faz tanta diferença. Nunca a diversidade cognitiva foi tão necessária, bem como a agilidade intelectual. E este é um aparente paradoxo, pois num momento em que, muitas vezes, só podemos contar fisicamente connosco, precisamos cada vez mais uns dos outros… logo, as nossas “skills” de relacionamento interpessoal passam a ser críticas;
  7. A oportunidade perdida do nivelamento de géneros no trabalho – uma das potenciais oportunidades que o confinamento trouxe foi a do nivelamento de géneros no trabalho. Por muito que a legislação evolua, a sociedade evolui muito mais devagar, e isto infelizmente verifica-se no caso da igualdade de género. Por muito valor que as mulheres demonstrem, muitas vezes são penalizadas pela sua necessidade de repartir o seu tempo e disponibilidade entre a carreira profissional e o apoio à família. E por muito “moderna” que a sociedade se proclame, a mudança de comportamentos na dinâmica familiar muda mais devagar do que deveria, em muitos casos. Com o confinamento e o trabalho à distância, seria razoável imaginar que mulheres e homens ficariam em paridade no que toca a disponibilidade. Todavia, isto infelizmente não aconteceu, uma vez que, com as escolas fechadas, os filhos também ficaram confinados no mesmo espaço que os pais. Como dizia uma velha amiga minha, “eu, que tenho 3 filhos, com o Covid passei a ter de cuidar de 4!” (referindo-se ao marido, naturalmente). Enquanto os homens não se libertarem da “síndrome maternal” e enquanto as mulheres não deixarem de ser cúmplices dessa postura, dificilmente se cumprirá esta oportunidade. A paridade tem de começar em casa.

Termino recomendando a leitura de dois artigos muito interessantes, um da HBR chamado “Develop Agility That Outlasts the Pandemic“, e outro da McKinsey chamado “From thinking about the next normal to making it work: What to stop, start, and accelerate“.

Deixo-vos por fim com uma magistral  TED Talk do John Kim sobre resiliência.

Enjoy 😉

 

 

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